São crescentes na literatura os estudos que tentam estabelecer uma aproximação conceitual sobre a manifestação da velocidade no futebol. Em um primeiro momento é inevitável pensarmos na velocidade em sua forma de capacidade física/biomotora/coordenativa/condicionante, como assim é classificada nos livros clássicos de treinamento desportivo. Por essa perspectiva, que considera sobremaneira a ação física, a velocidade é chamada de: velocidade simples.
Entretanto, conceitos contemporâneos (e vanguardistas) aparecem com um olhar integral no que diz respeito à velocidade no futebol. Acredita-se, nesse contexto, que a velocidade ocorre também de maneira perceptiva/cognitiva. E diante disso, podemos notar que no jogo de futebol ela é evidente em situações que requerem do futebolista a velocidade de percepção, velocidade de antecipação, velocidade de decisão, velocidade de reação, velocidade de movimento sem bola, velocidade de ação com bola e velocidade de ação de jogo. Assim sendo, tais manifestações são denominadas de velocidade complexa.
Pode-se, portanto, considerar que a velocidade simples é utilizada na sua forma condicionante, visto que os sprints (cíclicos e acíclicos) ocorrem de forma repetida durante todo o jogo e o aparecimento da fadiga ocasionado por essas ações interferem em mecanismos centrais que podem perturbar a velocidade complexa de jogo; e da mesma maneira, os aspectos coordenativos abordados no treinamento de velocidade simples são importantes para que haja uma economia de movimento, o que implica em um menor gasto energético ao final do jogo e até mesmo à possibilidade de realização de mais ações de sprints, visto que esse menor gasto energético no movimento pode protelar o aparecimento da fadiga em direção ao final do jogo e influenciar, como citado anteriormente, em mecanismos centrais.
A velocidade complexa pode ser explorada na mesma sessão de treinamento, contextualizada em situações de jogo dentro do modelo tático do treinador, e em qual princípio de jogo ele está buscando naquela determinada sessão, possibilitando ao futebolista: perceber situações específicas do jogo, processar essas informações, tomar decisões a respeito e resolver problemas – “ser mais rápido e melhor a perceber, a pensar e a executar". Esses exercícios devem contemplar problemas a serem solucionados, habilidades técnicas, variáveis físicas, psicológicas e cognitivas.
A dimensão tática, a qual representa a interação de todas as vertentes que abrangem o futebol, deve ser o alicerce de todo um planejamento e de todas as sessões de treino. A partir do modelo de jogo na qual o treinador deseja para a equipe, os trabalhos devem ser feitos tendo em vista que a velocidade será fundamental no posicionamento do atleta no campo de jogo e em como ele identifica e resolve os problemas a cada instante. Tendo claro essa importância, os trabalhos devem ser realizados na busca por padrões de comportamento (coletivos, intersetoriais, setorias e individuais) os quais treinadores e comissão técnica identifiquem como ocorrentes dentro do modo de jogar da equipe.
Para citar um exemplo disso (dentre vários possíveis), pretende-se para a sessão trabalhar dois principios do modelo de jogo, pressionar a bola e manter a posse de bola. Pode-se utilizar regras como, colocar uma das equipes em desvantagem numérica (equipe A) e outra com restrição no número de toques na bola (equipe B) em um jogo reduzido. Neste exemplo, a equipe A é obrigada a se posicionar pressionando o portador da bola, passando por uma significativa sobrecarga física, devido ao fato de estar com inferioridade numérica e portanto terá de cobrir uma área maior que a equipe B. Além disso, o simples fato de perceberem que estão em desvantagem os remetem à uma pressão psicológica maior. E por último, há uma carga cognitiva embutida nesses atletas que os farão pensar, organizar e tentar executar ações tático-técnicas a fim de conseguirem fazer pressão e recuperar a bola. Não diferente da equipe A, a equipe B que tem os atletas se movimentando constantemente na busca de sair da pressão para manter a posse de bola, também sofrerá essas três cargas, porém em magnitudes diferentes: uma menor carga física em detrimento de percorrer menor espaço no campo por atleta, uma carga psicológica em vista de estarem com superioridade numérica e se sentirem pressionados e com a responsabilidade de obter maior eficiência no jogo, e uma carga cognitiva alta em função da regra que restringe o número de toques na bola e que supostamente modifica apectos tático-técnicos dos futebolistas e também influencia as cargas físicas e psicológicas.
A partir da leitura escassa, porém contundente, de textos que contemplam o conceito de velocidade em sua forma complexa, venho compartilhar uma das múltiplas possibilidades de trabalho integrado, de forma a não excluir seus aspectos perceptivos/cognitivos e condicionantes/coordenativos. Acreditamos, que o fato de novos paradigmas surgirem não nos remete a abandonar totalmente os paradigmas anteriores. Diante disso, segue abaixo um modelo de treino no qual foram abordados a velocidade simples e complexa.
Neste treinamento, foram montadas quatro estações, duas que contemplam a velocidade simples (condicionante e coordenativa) e duas que priorizam o desenvolvimento da velocidade complexa (perceptiva e cognitiva).
Na estação 1 (E1) os atletas deverão realizar exercícios de coordenação em um equipamento com o formato de uma “escadinha” deitada (procurar como ladder drills no youtube) seguido de um sprint de 10 m. Depois o atleta deve caminhar até os cones em amarelo e realizar exercícios de coordenação com elevação do joelho de uma perna na primeira fileira de cones e depois com a outra perna na segunda fileira. O atleta deve se dirigir até o cone laranja trotando e realizar um sprint mudando de direção (cada vez para um lado). Depois deverá trotar pela lateral do campo e realizar exercícios de coordenação e alongamento dinâmico nos cones amarelos, em direção ao começo da estação (“escadinha”).
Na estação 2 (E2) os atletas participarão de um jogo reduzido com situações de 2 vs. 1. O atleta posicionado no centro do campo deverá passar a bola para um dos atletas posicionados no canto do campo. Esse por sua vez, deverá chegar ao outro lado do campo, trocando passes com seu companheiro posicionado no outro canto do campo, e entregar a bola para um dos dois atletas posicionados no canto oposto. Os atletas com a bola poderão dar somente dois toques na bola e deverão atingir o objetivo (levar a bola ao canto oposto) o mais rápido possível. O atleta posicionado no centro deverá marcar e tentar impedir que o objetivo seja concluído. Todos os atletas deverão experimentar todas as situações do jogo: marcar, levar a bola ao outro lado, esperar a bola dos atletas que estão jogando.
Na estação 3 (E3), do mesmo modo que a E1, os atletas treinarão a velocidade coordenativa/condicionante. Dessa forma, o atleta deverá realiza um sprint de 10 m do cone laranja até as estacas, a partir daí deverão realizar movimentos de zig-zag em alta velocidade, seguido de outro sprint de 10 m até o cone laranja. Depois o atleta irá trotar até os cones posicionados deitados no qual terá de passar sobre eles realizando exercício de coordenação, com elevação dos joelhos, em alta velocidade, e seguirá ao cone posicionado adiante realizando mais um sprint de 10 m. Depois deverá trotar pela lateral do campo e realizar exercícios de coordenação e alongamento dinâmico nos cones amarelos, em direção ao começo da estação.
Por último, na estação 4 (E4) os atletas deverão participar de um jogo com campo reduzido, utilizando balizas pequenas. Pode haver variações no jogo quanto às regras, número de jogadores e dimensões do campo, sempre conforme o objetivo dentro do modelo de jogo e do principio a ser trabalhado na sessão. O objetivo do jogo é colocar o atleta em uma situação onde a velocidade de processamento da informação, tomada de decisão e execução sejam realizadas o mais rápido possível em ações tático-técnicas.
Dada as possibilidades de trabalhar a velocidade no contexto em que ela se manifesta durante o jogo de futebol, é possível elaborar exercícios cujo os objetivos sejam ditados pela dimensão tática e direcionados ao modelo de jogo do treinador. Além do mais, pode-se integrar exercícios condicionantes e coordenativos como forma de possibilitar que as ações psicofísicas que envolvem velocidade sejam mantidas em um nível ótimo durante todo o jogo.
Texto com contribuição de Lucas dos Santos Villela -> http://futebol-tatica.blogspot.com/
Um comentário:
Caro amigo:
O presente artigo representa uma abordagem interessante, tanto descritiva quanto sucinta face ao universo que transcende a nossa compreensão reducionista. Aproxima-se dos conceitos mais complexos, cujo olhar está direcionado para a velocidade tática-dinâmica; uma adição ainda mais complexa e que trata a velocidade sob trabalho diacronico e em tempo estratégico... Valeu, de certo modo, o conteúdo dos seus entendimentos. Abraçi, Cyro Zucarino. futebolciencia@globo.com
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