quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Pesquisa Científica Aplicada ao Futebol: revoluções na concepção, emergência de novos paradigmas e direções para investigações futuras (Parte II)

Bruno Natale Pasquarelli*

 

Na primeira parte (Uma Análise Crítica Sobre a Pesquisa Científica Aplicada ao Futebol - Parte I) foi mostrado um diagnóstico de como a pesquisa científica tem sido aplicada de modo geral no Brasil e especificamente no futebol. Foi detectado que passamos por um período em que a “Ciência Normal” não traz descobertas e não avança metodologicamente, apesar da produção científica aumentar consideravelmente (Khun, 2003).

Face ao exposto, temos que entender como a pesquisa, por meio de suas revoluções, pode contribuir para que: a) as publicações sejam incentivadas a oferecer subsídios aos profissionais que estão no campo e não, e tão somente, para acentuar níveis de produtividade de pesquisadores com pouca, ou quase nenhuma, relação com a intervenção pedagógica do treinamento; b) paradigmas sejam colocados à prova e sejam descobertos novos caminhos a fim de solucionar problemas enfrentados no treinamento do futebol, e; c) para que sigamos alguns passos fundamentais para assegurar que as futuras investigações, quantitativa ou qualitativa, levem a interação da pesquisa com a prática e propicie avanço no conhecimento sobre o futebol como um todo.

A priori, faço algumas críticas, as quais servem também como autocríticas, sobre o paradoxo da utilização de ferramentas metodológicas e o avanço do estudo dos métodos e intervenção pedagógica.

Temos acompanhado o surgimento de novas ferramentas metodológicas que possibilitam um entendimento maior sobre os jogadores de futebol, sobre o treinamento ou sobre o jogo formal. Como exemplo disto, podemos citar equipamentos para avaliação cineantropométrica ou os exames maturacionais, que nos fornece informações individuais de cada jogador e do grupo. Com relação ao treinamento e o jogo, tem emergido a utilização de ferramentas que mensuram os esforços realizados pelo jogador de futebol, como por exemplo, GPS’s e cardiofrequencímetros, dentre outras ferramentas.

A despeito destes avanços, não necessariamente estudos que utilizam essas ferramentas contribuem com informações relevantes. O que vemos é justamente o contrário, algumas pesquisas não se findam em estudar o método de treinamento ou buscam entender melhor o jogo, mas sim replicar com diferentes amostras o uso das mesmas ferramentas.

Dessa maneira, o importante neste caso é termos ciência de quais métodos ou ferramentas são válidos, dai por diante, seremos responsáveis de aplica-los, se viável, ao grupo de jogadores no qual trabalhamos, sem necessariamente divulgar em massa esses resultados.

Para os profissionais que tem acompanhado a evolução do futebol mediante o surgimento de novas pesquisas, não passa despercebido que estamos vivendo um momento de crise científica no futebol. Surgem nesse período novas abordagens e teorias relacionadas ao treinamento no futebol. Dentre as quais, a abordagem sistêmica-complexa de treinamento tem se destacado nos debates sobre uma mudança de paradigma. Para não entrar em detalhe neste tema, acredito que outros textos publicados na Universidade do Futebol podem esclarecer melhor o que ela representa hoje. Sugiro ainda, a leitura de outras referências (Garganta, 1995; Garganta e Greháine, 1999; Garganta, 2002; Leitão, 2009; Pivetti, 2012).

O fato é que novas teorias não aparecem da noite para o dia. Geralmente elas dão seus primeiros sinais algumas décadas antes, como podemos observar nos textos de Frade e Seirul×lo na década de 80 e Garganta e colaboradores e Bayer na década de 90. No entanto, essa nova teoria não se manifestou no passado por não haver crises científicas, visto que os métodos analíticos (com ênfase tecnicista e física) ou integrados, assim como as pesquisas científicas que utilizavam a mesma abordagem, resolviam (e ainda resolvem de certa forma) muitos problemas relacionados ao treinamento no futebol.

Sendo assim, alguns novos e outros nem tão novos pesquisadores creem que podem resolver os problemas que estão conduzindo o futebol, e principalmente a formação de jogadores, a um declínio considerável, sobretudo no Brasil. Contudo, esse processo de mudança parcial ou total do paradigma vigente passa ainda pela desconfiança de “antigos” pesquisadores e “novos” pupilos destes pesquisadores, que não “dão o braço a torcer”, pois são formadores de opinião e dedicaram décadas de estudos e de pesquisa às teorias que hoje estão sendo contestadas.

É exatamente esse o processo descrito por Khun (2003). E não haveria de ser diferente. Por isso, antes de qualquer rebeldia pela imposição de um novo paradigma, faz-se necessário que revoluções sejam elaboradas à luz da ciência, para haver uma mudança na concepção de mundo dos profissionais já atuantes e dos alunos em formação nos centros de ensino. Com isso, devem ser criados novos instrumentos de investigação, que levarão a uma mudança dos óculos que permitirão enxergar o futebol, possibilitando resolver problemas ou situações no treinamento do futebol nas quais todos já estavam familiarizados com novas soluções.

Segundo as novas teorias, é necessário entender o futebol sob um olhar sistêmico-complexo, que enxergue e estude as interações e interdependências das partes que compõem o todo (física, técnica, tática, psicológica, etc.). Pois, quase que 100% dos estudos que me proponho a ler utilizam uma abordagem investigativa cartesiana: duvida, divide, elabora e relaciona à parte ao todo de forma metódica. Do jogador ao jogo, seja qual for o objeto de investigação: “fragmentar para tentar entender”; esta é a forma que os pesquisadores encontram para dar sua contribuição científica ao futebol.

No entanto, haja vista a importância da pesquisa científica em trazer novas abordagens e construir novas teorias, temos que seguir algumas etapas essenciais do processo investigativo. Dessa maneira, teremos o compromisso de sempre contribuir para uma ciência cumulativa e evolutiva ao mesmo tempo. Não podemos cometer o mesmo erro e pesquisar sempre mais do mesmo, como citado no primeiro texto da série. Para tanto, alguns passos são primordiais para que os objetivos sejam alcançados:

 

1. O problema de pesquisa deve ser pensado em vista de um problema teórico-prático ou prático-teórico que gerou dúvida.

2. Antes de qualquer procedimento deve-se investigar, preferencialmente de forma qualitativa, se os resultados esperados da pesquisa podem ajudar o profissional do campo. “Parece óbvio, mas quase nunca isso acontece”.

3. Certificar-se que os procedimentos metodológicos utilizados não interferirão na mudança da rotina da equipe. Caso isso ocorra, os resultados serão contaminados e distorcidos da realidade da equipe e dos jogadores. “Isso pode gerar incerteza sobre a validade da pesquisa”.

4. Facilite o acesso dos profissionais do campo à informação (se não for você esse profissional). “Além da imprescindível divulgação em meio científico, crie soluções criativas para que os resultados teóricos se convertam em intervenção pedagógica de melhor qualidade”.

 

Por fim, acredito que a pesquisa científica no futebol sem a função de acrescentar conhecimento não há razão de existir, pois não causa mudanças didático-pedagógicas (o que o futebol brasileiro mais necessita no momento). Ademais, saliento que olhemos para o futebol como uma teia complexa e interdependente de suas componentes. Portanto, sejamos cautelosos quanto a utilização de métodos reducionistas, os quais não acarretam nenhum impacto sobre a totalidade do futebol.

Temos que pesquisar mais (ou não necessariamente), e principalmente, temos que pesquisar melhor!

 

Referências Bibliográficas

GARGANTA, J. Para uma teoria dos jogos esportivos coletivos. In: GRAÇA, A., OLIVEIRA, J. (Ed.). O ensino dos jogos esportivos coletivos. 2ed: Universidade do Porto, 1995. p.11-25.

GARGANTA, J. Competências no ensino e treino de jovens futebolistas. Lecturas Educación Fisica y Deportes. 8 2002.

GARGANTA, J.; GREHÁINE, J. F. Abordagem sistêmica do jogo de futebol: moda ou necessidade? Movimento, v. 5, n. 10, p. 40-50, 1999.

KHUN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 7ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LEITÃO, R. A. O jogo de futebol: investigação de sua estrutura, de seus modelos e da inteligência de jogo, do ponto de vista da complexidade. 2009. (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

PIVETTI, B. M. F. Periodização Tática: O futebol-arte alicerçado em critérios. São Paulo: Phorte, 2012.

 

*Professor universitário das disciplinas de futebol e bioestatística (UNIP/São José dos Campos-SP). Mestre em Educação Física pela UEL. Doutorando pela UNICAMP. Coordenador pedagógico das categorias de base do São José EC.

brunopasquarelli@hotmail.com

Um comentário:

Vinicius Milanez disse...

Prezado Bruno, parabéns pela visão crítica. Que não deixemos nos iludir com os indicadores quantitativos da CAPES. Gostaria de repercutir seus dois textos com esse único, porém extenso comentário. Essas suas postagens me remeteram ao primeiro paradigma criado sobre o tema "fadiga e exaustão". Por volta de 1800, os primeiros estudos sobre mecanismos de fadiga e exaustão focaram apenas no sistema muscular dando origem mais tardiamente ao modelo chamado “modelo catastrófico de fadiga” (Edwards 1983). Esse modelo influenciou pesquisadores, professores e livros durante longos anos até que novos estudos passaram a investigar a participação de outros sistemas tais como sistema nervoso central, termorregulatório, cardíaco além da influência dos diferentes tipos de tarefa, o que levou a contestação do modelo. Inegavelmente, o pensamento cartesiano-newtoniano, (Descartes e Newton séc. XVII) produziu e continua produzindo progressos espetaculares em certas áreas. Entretanto, nos dias de hoje, tentar explicar fenômenos complexos a partir de princípios reducionistas-mecanicistas peculiar ao pensamento cartesiano-newtoniano me parece pretensioso e equivocado.
A meu ver, o grande prejuízo do pensamento cartesiano-newtoniano estar na base do pensamento de “alguns” pesquisadores contemporâneos, é que esse “tipo de pesquisador” não se interessa realmente com o esporte, mas sim única e exclusivamente com suas pesquisas que lhe darão status acadêmico. Esse “tipo de pesquisador” quer a admiração e respeito da classe acadêmica e não da classe dos treinadores e preparadores físicos, os quais muitos deles, julgam inferiores. Diante desse pensamento, esse “tipo de pesquisador” utiliza o esporte como meio para testar as suas hipóteses com alguma validade ecológica. Na maioria das vezes não há preocupações sobre quais contribuições efetivas suas hipóteses darão para o esporte, mas sim se há interesse de publicação em periódicos renomados, mesmo que não seja útil do ponto de vista pratico. Esse “tipo de pesquisador” estuda as necessidades ou as possibilidades de publicações nos periódicos e não as necessidades reais e práticas do esporte. A preocupação é com o que ainda não foi publicado, e não com o que realmente poderia contribuir para o avanço do esporte. É obvio que nem todas as pesquisas precisam produzir conhecimento com fins práticos, mas em se tratando de Sports Sciences, as pesquisas deveriam ter essencialmente essa preocupação. Entretanto, isso só será possível quando esse “tipo de pesquisador” descer do seu pedestal de intelectual acadêmico, ir a campo pra trocar ideias com treinadores e preparadores físicos para poderem fazer a seguinte pergunta; O que vocês realmente precisam? E talvez o que eles realmente precisam não garanta publicações em importantes periódicos, então se você desistir da pesquisa você é esse “tipo de pesquisador” que estou me referindo.

Referências Bibliográficas
CAPRA, F. A influência do pensamento cartesiano-newtoniano. In: _____. O ponto de mutação: A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. 447 p. p.93-155
EDWARDS, R. H. T. Biochemical bases for fatigue in exercise performance: Catastrophe theory in muscular fatigue. in: Knuttgen, H. G, Vogel, J. A, Poortmans, J. Biochemistry of exercise. Champaign, IL: Human Kinetics,1983. p. 3 - 28.

Vinicius Milanez
Doutorando - Bolsista CAPES - PPGEF UEL/UEM
Mestre em Educação Física - UEL
Graduado em Educação Física - UNESP
Grupo de Estudos das Adaptações Fisiológicas ao Treinamento - GEAFIT